terça-feira, 27 de março de 2007

BICHO SOLTO NA AREIA

por André Pugliesi e Rodrigo Abud


"Abud, será que é preciso passar protetor na genitália?", pergunto, faceiro por tão curiosa ignorância e, ao mesmo tempo, temeroso com as possíveis conseqüências nefastas do que estava por vir. Afinal, cruzada a porta do vestiário - reparem, unissex - o sol comandava, reinando absoluto num céu azul alucinante.

Era sabadão, quase dez horas da manhã, e nossa brodagem em nome do jornalismo geraldino era retomada na Praia do Pinho, Santa Catarina, principal ponto naturista do nosso Brasilsão de Deus.

Pouco mais de 200 quilômetros em marcha ré, eu taxiava em frente à residência de Abud, em Curitiba, capital do Paraná, no início da manhã, saudado com o cantar dos pássaros, numa preguiça desgraçada. Quase nada perto da convicção de que a aventura pelado, com nada que se tem direito, seria muito boa.

Destino: nu
Cumprimos o pequeno trecho Curitiba-Camboriú na ponta dos dedos, embalados pelo mítico rock, este ritmo insinuante que faz a cabeça dos jovens. Se não fosse por uma disputa bem pegada com um tiozão e sua senhora, a bordo de um Fiat Hundred Forty Seven creme, poderíamos afirmar que a nova matéria se anunciava numa tranqüilidade incomum.

Veloz e furioso

Pois foi só embicarmos na única entrada para o recanto naturista, estacionarmos na cancela - o parque peladeiro é dividido do “mundo normal” - para, enfim, sentir a adrenalina consumir as veias. Neste caso, reação um tanto previsível, considerando que em questão de minutos nos veríamos na responsa de chamar no Adão. Assim... tal e qual amarrar o tênis.

Sem demora, passamos as caras com a segurança que nos permitiu o acesso, facilitado pelo esquema armado na véspera. Faltava então, como obstáculo derradeiro, bater um papo com nosso contato na área: Alessandra, gerente da Pousada & Camping Praia do Pinho, estabelecimento que junto com um restaurante, reina absoluto na área.

Antes de última cancela já avistávamos, bem ao longe, corpos despidos flanando na areia. Contudo, nada comparável à cena que viria. Foi eu frear a rodonave, eis que surge de trás do muro, vindo em nossa direção, um 100% desinibido rapaz com seu pênis a pendular. Olhar absolutamente destreinado foi impossível não notar e, claro, se incomodar. Acabamos por cair numa risada extremamente nervosa, o estopim para uma possível queimada de filme que, certamente, despertaria desconfiança.

Sabendo disso, derrotamos rapidamente o choque, controlamos os impulsos e fomos digladiar com Alessandra. Prontamente, sacamos de nossas credenciais e intenções. "Olá, tudo bem? Eu sou o André, ele é o Rodrigo, somos jornalistas, essas são nossas carteiras. Sabe como é, deve pintar todo tipo de aventureiro por aqui. Viemos fazer a matéria que eu te falei ontem, lembra?", eu disse.

Vista aérea do Pinho

Sem dar muita importância, e com um ar meio cabreiro, a jovem loura seguiu o combinado e convocou Valdir Nei de Melo, 49 anos, principal autoridade do local na posição de presidente da organização não-governamental Naturistas da Praia do Pinho (ONPP). Seria ele o responsável por nos acompanhar e mastigar as informações e regras da praia.

Com o mesmíssimo figurino que ostentava há cerca de cinco meses, ele nos recebeu. Corpo rotundo de tiozão, sacão balangando bonito e na pele castigada do sol a confirmação de que ali estava, sem dúvida, o general da quebrada. Tomado o primeiro jab no round anterior, assimilamos o golpe numa boa: sem crise nenhuma conversar com um total desconhecido despido e, conseqüentemente, de arma apontada (não engatilhada) para nós.

"E aí, Valdir? Seguinte, estamos fazendo uma reportagem sobre naturismo. Gostaríamos que você apresentasse o local, como funciona etc, certo?", iniciei. No que ele respondeu. "Sem problemas. Mas tem um detalhe, nesta faixa de areia em frente à pousada a nudez tem que ser total".

Vestidos com os óculos de sol
O aviso do presidente de que a partir de então teríamos que chamar no Adão era tudo o que nós queríamos ouvir. Viajamos para isso. Mas quando a bola está na marca da cal, com o Maraca lotado, jogados 47 do segundo tempo, é impossível não rolar uma aflição. Sem contar que, em nome da promoção, do registro jornalístico, facilmente conseguiríamos uma permissão para circular com o material ensacolado.

Com o intuito de amadurecermos a idéia antes de manobra tão ousada, pedimos um break ao nosso guia e, enquanto ele retornava para a areia, fomos tomar a decisão. No entanto, nem foi preciso o parlamento, pois, com grande sensatez, Abud mandou. "Foda-se, vamos nessa".

Contraste nos bronzes

Foi nesse momento que nos deparamos com a primeira grande diferença do mundo naturista para o universo degradado, hostil, capitalista falido das aparências. Ao contrário do que geralmente acontece quando se vai desprevenido ao mar, não foi preciso descolar um mocózinho ou organizar a tradicional paredinha de toalha para trocar o modo underwear pelo bermuda (sunga não) ou biquíni. Dessa forma, fomos ao vestiário (unissex, faz total sentido), tiramos os tênis, meias, camiseta, bermuda, é um, dois, três e... pronto, óculos de sol e nada mais!

A sensação de ficar peladão em público é sinistra - vestiário é fichinha. Simplesmente, ali está você, com o aparelho genital na vitrine, e um monte de gente que sequer trocou um rápido cumprimento com a sua pessoa na escadaria do prédio, tomou um Minuano gelado na mercearia ou, sei lá, sentou ao lado no colégio - não que essas situações prosaicas sejam o suficiente para tirar a roupa na frente de alguém. No início, e em algumas bad trips no decorrer do período, é algo que parece ser a realização daqueles pesadelos em que se está nu, sem ter como se defender, no churrasco de quinze anos de formatura do primeiro grau. Contudo, voltemos aos fatos.

Era chegado o momento de Pugliesi e Abud invadirem o terreno da praia do Pinho. E, para tanto, íamos nos deparar com a segunda grande diferença do mundo naturalista. Como está na abertura desta reportagem, assim que ficamos só na carcaça, e diante dos potentes raios solares, inquiri: "Abud, será que é preciso passar protetor na genitália?". Que é necessário besuntar rosto, costas, dorso, braços e pernas todo mundo sabe. Mas alguém já ouvir falar por aí que é importante cobrir a aparelhagem se for mostrá-la ao sol?

Creio ser meio óbvio que sim. Porém, pelas barbas do profeta, não está escrito em lugar algum! Olhei no verso da embalagem e não tinha nada do tipo: "ao praticar nudismo, homens lambrecar o pênis, mulheres a vagina". Sendo assim, após a pintura básica, aplicamos uma demão ligeira nas nádegas e somente um tapa no guri. Vai que cai, melhor não mexer com o desconhecido. E assim, servidos ao óleo branco e portando apenas as lunas (exceto pelas chaves do carro, carregada na mão), fomos à procura de Valdir em seu habitat, literalmente, natural.

Formando o bonde nudista
Embicamos no corredor para a areia como se estivéssemos prestes a pisar o gramado do Estádio Azteca na final da Copa de 70 - pressão frenética com a iminência de trocar uns passes com o Crioulo. No entanto, bafejados pela sorte, avistamos a barraquinha de Valdir logo em frente, e lá nos abrigamos para um conveniente tempo de aclimatação. Eles que aguardem – ou imaginavam que ia ser fácil nos tirar pra baitola? (o que fazem dois marmanjos passeando desnudos numa área para casais?).

"Vou explicar pra vocês basicamente como é a divisão. Primeiro, lá no começo, do lado esquerdo (olhando para o mar) é livre, pode ficar ou não pelado. Pra cá das pedras é a zona de adaptação. E, da marca até o final, do lado direito, são permitidos apenas casais. E totalmente nus", mapeou Valdir, destacando que, em se tratando de um espaço público, as pessoas podem entrar e sair a hora e como quiserem. Entretanto, são aconselhados a colaborar, chamando no Adão e Eva ou, para manter a paz, ralar o peito. "Dificilmente alguém não compreende", completou.

Comum mesmo é a pilantragem querendo aproveitar a liberdade das vestes para se entregar aos prazeres do vuco-vuco. E neste caso, Valdir cresce pra cima de si mesmo numas de meganha e interpela quem estiver faltando com a ética. "Primeiro eu chamo a atenção, como no caso de uma ereção. Depois tenho que pedir para se retirar". Na manha, sempre, até porque, ali o desguarnecimento é geral.

Não tem mistério

Ciente das regras básicas, formamos o bonde para dar uma geral nas areias do Pinho. E assim nós fomos, com Valdir elogiando a beleza natural do local, destrinchando um pouco mais do manual de conduta, salientando as ações da ong, enquanto eu e Abud só naquele maroto "nossa, que legal, é mesmo", ao passo que, em nossa mente, ressoava o grito "porra, tô nude!".

Mas sabe como é, malandro. Baita brisa refrescante nas partes, o sol como testemunha, o mar azul e convidativo... com o tempo você relaxa total. Até porque, todos compartilham da mesma condição, e esse é o segredo para ficar numa boa. Além do mais, ninguém fica mirando as partes pudendas alheias – não na hard face, pelo menos.

Foi quando estávamos bem sossegados, caminhando e molhandinho o pé na água, ansiosos pelo mergulho, que Valdir nos impôs uma tarefa insana: atravessar, pelas pedras, até o outro lado do recanto naturista, onde se pode tirar ou não a roupa. É sabido que transitar pelas rochas não é simples, tem o tão temido limo, os saltos, entre outros obstáculos perigosos. Agora, que tal fazer isso sem qualquer proteção?

A poucos metros da escalada, com Valdir à frente, já começou a briga por posição entre eu e o Abud. A colocação mais perigosa já estava assumida, a de maquinista, restava agora a briga para não ser o vagão do meio. E daí ficou tipo em largada de Fórmula 1, com os carros zanzando de um lado para o outro. Seria até antiético eu revelar quem ficou na intermediária, mesmo porque durante a longa jornada rolou uma alternância, sempre com o espaço mínimo rigidamente respeitado.

Concluído o desafio, deixo a dica para os rapazes quanto ao melhor procedimento para o salto nas pedras: se for dar um vôo extenso, da última rocha para a areia, por exemplo, antes colha a bolsa escrotal com as duas mãos, como se estivesse na barreira no jogo de futebol, e aí sim se jogue. Point totalmente escaneado, e verificado que do lado de lá só havia homens e um clima de flerte gay violento, poderíamos enfim salgar o couro.

Prazer vs. Observação
A prática da natação estilo como veio ao mundo é certamente o que há de melhor. As únicas contra-indicações são o surfe de peito (o popular jaca) no raso e a constante aparição dos "peixes-moicano", quando o pessoal ergue muito a nádega para furar a onda. Fora isso, é um espetáculo ficar lá, por horas, flutuando, literalmente livre, leve e solto.

Mas o prazer teria que ficar de lado em nome da apuração. Voltamos para a areia a fim de catalogar os tipos e, assim, concluir os trabalhos. "A maioria dos freqüentadores se encontra na faixa dos 35 aos 45 anos, são casais com a família, e vindos de Santa Catarina, principalmente, São Paulo e Paraná. Mas temos muitos jovens também", nos disse depois Anílton Bitencourt, um dos proprietários e administrador da Pousada & Camping Praia do Pinho (que compreende ainda um quiosque e o estacionamento).

Apesar do pouco comparecimento do público – nossa empreitada foi realizada uma semana após o carnaval, feriado que é o top de visitação na temporada – notamos exatamente isso, filmando o movimento confortavelmente sentados em uma toalha para evitar os siris. E aí completamos o álbum de figurinhas: tinha pomba cabeluda, careca, linguiça toscana, salsichão, pepino, peito grande, pequeno, farsante, tudo bem sortido para o gosto geral.

Todos convivendo pacíficamente. Não por acaso. "Para praticar o nudismo, a pessoa tem que ter cabeça aberta, bem resolvida, o que é mais comum nessa idade", apontou com precisão, novamente, Anílton, largamente experiente apesar dos 25 anos.

A propósito, o encontro com o grande empreendedor do nudismo foi bem engraçado. Fomos informados que ele estava no quiosque, sendo assim, eu e Abud nos dirigimos até lá. No caminho, dois homens vinham no sentido oposto: um cinquentão, pança notável, cabelos e barba compridos, aquele naipe hippie clássico; enquanto, quase ao lado, um gurizote com pinta de surfista e calçado em bermudas, chinelos e camiseta. Logicamente, fomos seco no tiozão, pensando ser Anílton. Ledo engano. O simpático manda-chuva não é adepto do pintofree, segundo ele, para manter um distanciamento profissional.

A fome já castigava, então fomos almoçar. E no restaurante fora da pousada (que possui um amplo refeitório) bate aquela bad trip do pesadelo. Pois lá, fora da faixa da areia, é cada um por si, e muita gente não fica pelada. Alguns vestidos normalmente, outros de toalhinha, e poucos em pêlo. O que acarreta cenas engraçadas. Como da família almoçando muy respeitosamente, sentada na mesa, ao passo que volta e meia um pênis margeia perigosamente o prato. Coisas da vida naturista.

Feita a digestão, partimos de peito aberto para mais uma longa salgada no esqueleto, para a refrescar final. O sol já sumindo, ventinho gelando, resolvemos que era tempo de cobrir o corpo e pegar a estrada. Quase dois anos passados da última reportagem, a nova fase estava definitivamente inaugurada. A lamentar, apenas o fato de não ter rolado o incrível vôlei de praia pelado. Quem sabe numa próxima oportunidade...

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