terça-feira, 20 de setembro de 2005

ENCAÇAPADOS NA QUEBRADA

por André Pugliesi e Rodrigo Abud

Sempre que eu e Abud partimos rumo ao desconhecido carregamos uma máxima: independente do resultado da empreitada – seje bom, seje ruim – o importante é preencher o livrinho da vida. O que não pode é apontar na reta de chegada com um pocket book debaixo do braço. Tem que ter história pra contar. E isso não nos falta. Nossa parceria já rendeu páginas e mais páginas, boa parte delas aqui publicadas. Teve de um tudo. Geral chamando na hands num cinema pornô, xoxação desenfreada numa casa de swing, salves no encontro Racional, fervo na pista da melhor idade, entre outras peripécias. Tantas emoções, porém, poucas comparáveis as que eu destrincharei na seqüência para vocês. Segue o baile...

Abud mandou a pauta pelo msn: participar de um torneio de sinuca modalidade bola oito. Até aí, grandes merda. Mas aguardem. A parada tinha tudo para ser nervosa a começar pelo local de sua realização, a Associação de Moradores Moradias Cajuru. Traduzindo para quem não é da área, o Cajuru é o bairro mais violento de Curitiba, seguido de Boqueirão, Cidade Industrial e Sítio Cercado. E embora soubéssemos desse fato desde o princípio, só ligamos o nome à pessoa quando pintamos nas redondezas. Mas voltemos. Outro aspecto que indicava para uma matéria interessante tratava da premiação: 500 reales para o campeão, 250 para o vice, 150 para o terceiro e 100 para o quarto. Não que nós pretendêssemos engordar o numerário – dada nossa total inexperiência no assunto - mas jogar valendo dinheiro teria um gostinho pra lá de especial. Para nós então - que rasgaríamos gloriosamente os 20 mangos da inscrição - seria uma delícia. Então fechou a questã. Dia 10 de setembro eu e Abud voltaríamos às ruas.

Colocando as bolas na reta
Nasceu o sábado – com a capital paranaense lindamente ensolarada – e eu telefonei para o parceiro a fim de acertarmos a diligência. Foi quando ele me informou que alguns participantes do certame estariam num determinado bar, aquecendo os tacos entre um chocomilk e uma Sete Belo. Localizado na República Argentina, avenida que faz parte do itinerário costumeiro de Abud, o boteco foi o grande responsável pela idéia da matéria. Voltando para o lar num dia qualquer, Abud visualizou um chamativo cartaz de divulgação e teve o estalo. Como o início da competição aconteceria somente às 19 horas, desembarcamos no ponto de encontro ao final da tarde para nos adonarmos do clima de um torneio de bilhar de alto rendimento. Só não contávamos com a decepcionante audiência, encontravam-se no local meia dúzia de dois ou três bêbados. Mas foi coisa de Deus. Só por ele, a mesa de sinuca estava vazia e pudemos azeitar as articulações cutucando as pelotitas coloridas. Três fichas e algumas Wimis depois, nossos perfis como atletas de bilhar eram os seguintes:

André Pugliesi – Nas três partidas abriu larga vantagem. Deu chapéu, pedalou, bola no meio das pernas e drible da vaca no começo. Porém, sucumbiu nos minutos finais nas três oportunidades. Jogo pouco consistente.

Abud, esquentando o tamborim

Rodrigo Abud – Começou muito mal três vezes, mas virou nos últimos instantes. Compensou o ataque deficiente com uma boa defesa. No entanto, assim como André, praticou um jogo sem consistência.

Preocupados com a possibilidade de desclassificação sem encaçapar uma única bola, emendamos uma resenha com o dono do estabelecimento, que também participaria. Teríamos alguma chance? João Santos amenizou. “É muito bem disputado. Tudo pode acontecer”. A nosso favor, o fato das mesas serem pequenas, o que sabidamente amplia as chances dos jogadores de pouca técnica e muito vigor. Cientes da impossibilidade de faturar o cascalho, alimentamos a idéia de quem sabe meter duas bolas na trave, caprichar no chuveirinho, dividir todas e nos retirarmos honrosamente perdendo de pouco. Para completar o vislumbre, questionamos João sobre os favoritos. “Tem gente muito boa que vai participar. Acho que Grilo e Carlão são os com mais chances de vencer”, apontou.

Dono de bar e ostentando uma boina branca no melhor estilo Rui Chapéu, João Santos não chamou pra si a condição de cover do mestre sinuqueiro, justificando a inclusão dele fora dos possíveis vencedores. “Eu vou mais para participar. Devo ir lá pelas oito horas, se quiserem levo vocês lá”. Agradecemos a gentileza, mas novamente, decidimos antever o lance, ingênuos na pretensão de encontrarmos facilmente a associação de moradores.

Trutas e quebradas
Foram necessários três pit stops de informações para sabermos que ainda tinha muito chão pela frente. Era preciso descer a Luiz França, virar à esquerda após o depósito de gás, virar à direita dois cruzamentos adiante para então seguir cinco quadras até o destino final. Até a última entrada a rodonave escorregava macia na via asfaltada. Entretanto, quando avistamos a rua João Crissóstomo da Rosa, o Bronx se adonou da paisagem. Uma viela estreita, chão batido, muitos bares e igrejas, rapaziada pela rua em meio às casas amontoadas. Abud cravou. “Broncas legais!”. Confesso que a crença no brasileiro humilde e ordeiro se misturava ao temor de nos tornarmos os Tim Lopes da juventude. Sabe como é, hoje em dia é preciso desconfiar de tudo, da alta roda e, naturalmente, onde a turma está a perigo. Mas não dá nada, mergulhamos em busca do número 200 e o encontramos quase no final do caminho, vizinho de uma pracinha típica de periferia.

Fuca-bala fazendo a contenção

A Associação de Moradores Moradias Cajuru não difere de nenhuma das milhares de associações de bairro Brasil à fora. Um galpão modesto de fundos, mesas e bancos compridos de madeira espalhados. Ao centro, lá estavam as estrelas da noite: três mesas de sinuca confeccionadas pelos bilhares Celli. E a moçada estava se pegando bonito nas tacadas. Mas só por esporte. Em volta de cada mesa, 10, 15 homens travando jogos de curta duração e alta intensidade. Sem demora, eu e Abud fomos até a mesa de inscrição: 20 reales uma chance no campeonato, 30 duas. Conscientes, ficamos com uma. As tratativas foram com o segundo João da noite, Joãozinho, o organizador da brincadeira de perder dinheiro. Simpático, nos tranqüilizou geral. “A rapaziada vem mais para se divertir. É sossegado. E lá fora deixei um menino meu pra cuidar dos carros”, revelou o cabeça. Quanto ao jogo - embora fosse pouco provável que alguém ali estivesse disposto a marotear com 500 pratas na berlinda - baixamos a guarda e ficamos mais à vontade.

No celular, Dude Munhoz chamando. Colunista do Bule e catedrático em punk rock, Dude comporia o staff do Jornalista de Merda no evento, e carecia de dicas para nos encontrar. Depois das informações mais lazarentas possíveis, eis que minutos depois ele adentra faceiro ao recinto. O vô de Dude tinha mesa de sinuca em casa, o que gabaritava o netinho a ser nosso ponta-de-lança. Lamentavelmente, contrapondo à alegria de sua presença, veio logo a decepção. Devido a um compromisso posterior, nossa grande esperança ficaria de fora. Sem Dude, as chances de promovermos um brilhareco ficaram reduzidíssimas. Enfim, iríamos de prata-da-casa mesmo.

A preços justos, eram oferecidos quitutes e bebericos, gentilmente servidos pelas crianças da área, tirando onda de garçons. No entanto, preferimos um regime severo para não ter que lidar com algum imprevisto de ordem intestinal na hora de mostrar o pau e matar as bolas. Já Dude, agora na condição de técnico, não se fez de rogado e degustou a popular carne assada. E aprovou. “Muito bom. Tradicional tempero de igreja”, avaliou o professor.

O Maraca da sinuca

Mas o tempo passava e nada. Não víamos a hora de nos digladiarmos no feltro verde. Inscrições mil, entra e sai de pessoas, vanerão rachando as paredes, sauna de cigarro e bolas espocando sem parar aditivavam a ansiedade. Sem contar as diversas figuras caóticas que apareciam e desapareciam, tornando o ambiente tenso em alguns momentos. Menos mal, em se tratando do público, o melhor estava por vir, segundo João Santos. “Depois da meia-noite começa a chegar mulher bonita”, disse. Era a promessa, já que até o momento poucas moças perfumavam o ar carregado de cana, cigarro e tosqueira.

Depois de corridas quase duas horas de espera, finalmente o bagulho ia ficar frenético. João cresceu na organização e chamou o sorteio. Eram mais ou menos 28 inscritos. Os que não eram donos de bar, eram amigos do dono. Resumindo, de zé mane só eu e o Abud mesmo. Em cima de uma mesa, burburinho rolando, veio o primeiro nome a pular da cumbuca: André! Não pasmei. Seria surpreendente se meu nome saísse por primeiro para ganhar algum tipo de prêmio. Nesse caso, normal. Que fase. Segundo nome: Mário! Pronto, estava configurada a primeira eliminatória. Sem demora, Dude Munhoz surgiu me oferecendo um taco já devidamente auferido no teste de rolagem sobre a mesa. Aceitei e já fui criando intimidade com meu instrumento. Soou a convocação e eu atendi imediatamente. Mas não é que o tal Mário, aquele, simplesmente escafedeu? Pensei comigo, um a zero pra mim no W.O. e já estou no lucro. Até que se desfez o mistério. O garrancho pariu um Mário, mas era Márcio, simplesmente um dos organizadores do torneio.

Me mata de vergonha
De canto de olho eu já tinha observado o estilo de Márcio, e me chamou a atenção algumas bífas que ele tinha desferido. Tacadas que se fossem dadas por mim as bolas seriam lançadas para fora do estádio. Espertamente, cheguei no adversário para tentar arrefecer os ânimos. “É a primeira vez que participo de um campeonato, vim mais pra ver qual é. Até porque não jogo nada”, comentei. No que fui secamente respondido. “Tranqüilo, não tem problema”, disse meu oponente. É claro que teria problema. Para mim, óbvio. E tentando posterga-los o máximo possível, trabalhei para que Márcio desse a tacada tradicional de estouramento das bolas. Afinal, malandro que é malandro não estoura. Agredidos, os números se espalharam pela mesa e era chegado o momento do meu lance inaugural. Espalhei o giz com malícia no biquinho e fui pra dentro. Resultado: espirrada clássica! Foi quando tombou meu jipinho. Eu já não tinha o handicap técnico, e agora perdia totalmente o psicológico. Pra piorar, no meu box, Dude e Abud – aqueles que deviam me apoiar – choravam de rir do début vexaminoso.

Pugliesi, sendo abatido

Márcio não teve piedade e voltou esvaziando a mesa. Uma, duas, três, quatro, cinco bolas em seqüência na caçapa. Digamos que a partida havia se tornado um tanto quanto complicada para a minha pessoa. Sem pânico, chamei na humildade e passei a vez. Meu objetivo agora era humildemente acertar as bolas. Só. Não mato as minhas, mas também não entrego pra ele. Tática que não era tão simples. O nervosismo produzia suor e o taco não deslizava entre os dedos. Mas finalmente, Márcio pôs a bola oito pra dormir sacramentando meu primeiro revés. Com a disputa em melhor de três fomos para o segundo e derradeiro embate. Desta feita, não tomei uma tunda, mas sim uma piaba. Mas nada que tenha ofuscado minha única bola matada nos dois confrontos, produzida por acaso num belíssimo telefone. Bati na três que chocou-se com a sete que carregou meu alívio pela canaleta do túnel. Missão cumprida. Ao natural, meu algoz finalizou a partida e dirigiu-me cumprimentos cordiais.

Farofa passou a lingüiça
Eliminado, fui para a arquibancada e assumi a reportagem fotográfica. Com a palavra, literalmente, a bola da vez: Rodrigo Abud. Ele conta como foi...

Eis que vem à tona o meu jogo. Iria enfrentar o Farofa, um adversário marrento que atuava com uma luva preta sem dedos na mão esquerda. Todo cheio de nove hora. Não quis nem saber e fui pra cima, já que não tinha nada a perder. A grana da minha inscrição estava nas mãos dos organizadores e só me restava fazer pose de jogador profissional. Começo da partida - não vou negar -estava um pouco nervoso, afinal, nunca tive mais do que três ou quatro pessoas observando minha arte de desempenhar bola oito. No torneio o público era grande, e ainda tive o azar de cair na mesa principal, que apelidei de Maracanã, pelo fato do povão estar fervendo ao redor. Para me precaver, encostei no jovem e solicitei. “Vai de leve”. Bolas estouradas, minha primeira tacada foi forte e certeira, bola seis na caçapa do canto. Senti que o adversário tremeu na base, vendo o dinheiro da sua inscrição, assim como o prêmio, batendo asas. Tanto que retrucou. “Vai de leve você”, espantou-se Farofa. Mas como toda máscara tende a cair, a minha caiu em seguida. No decorrer da peleja só bati bola, enquanto o Farofa ia fazendo das suas e guardando na caçapa. Até tive chances de emburacar mais as meninas, mas parti para o estilo violento e não obtive êxito. Resultado: o adversário matando a oito e eu com seis bolas na mesa.

Segundo jogo, agora com o Farofa mais tranqüilo, sabendo que eu não era de nada. E dessa forma minhas chances foram menores. Para vocês terem uma idéia, talvez a melhor jogada que fiz foi uma tacada em que a branca passou raspando em duas bolas minhas, sem encostar, e caiu na caçapa. Coisa de quem sabe. Fui ficando desmotivado com a eliminação cada vez mais latente, tanto que a única bola que guardei foi em razão de um erro do adversário. Definitivamente, um jogo sem graça para o público e para mim, que tomei uma verdadeira sova. Novamente o resultado que todos esperavam, Farofa rolando a oito para a caçapa e eu definitivamente fora.

Bateu a deprê
A decepção de quem pagou pra participar de uma suruba com as coelhinhas da Playboy e não conseguiu nem ficar pelado se abateu sobre nós. Os olhos marejaram. A voz de Luciano do Valle que ecoava em nossos ouvidos e explodia em nossos sonhos - como nas narrações dos feitos de Rui Chapéu e Roberto Carlos na Bandeirantes - foi sumindo pouco a pouco. E sumiu. O Cajuru emudeceu. O pênis desceu. A fome bateu. A lágrima desceu. Não nos restava outra alternativa que não nos retirarmos à francesa pelas portas do fundo. Contudo, surpreendentemente, um incrível fenômeno de socialização tomou conta do ambiente antes de nossa partida. Tal qual um site bemnafoto underground todo mundo quis eternizar o momento com os dois jovens forasteiros.

O cartaz, registro histórico

Para piorar, segundo os especialistas, o ganhador seria conhecido somente no começo da tarde de domingo, e como eu e Abud estávamos na função desde às 17 horas, não teríamos condições de suportar a maratona. Lamentável, claro. As latas de Kaiser vazias se multiplicavam, a competição se acirrava, e a madrugada prometia fortes emoções. Infelizmente, tivemos que nos despedir da rapaziada, desejamos sorte e puxamos o carro. Lá fora, tudo em paz na quebrada e tudo em ordem conosco. Cravada na mente, a curtição de uma noite marota de sinuca.

O Rei do Cajuru
Conforme combinado, ativei meus contatos pra saber do desfecho do torneio. Primeiro, João Santos reportou. “Fiquei em sétimo, ganhei oito partidas. Quando a gente ganha é uma adrenalina fora de série, mas quando perde bate o desânimo. Saí de lá meio-dia morto de cansado. Não sei quem venceu”. Ficou a pergunta, que seria respondida pelo organizador Joãozinho na ligação seguinte. A disputa terminou às quatro horas da tarde de domingo, com impressionantes 1200 minutos de duração. Tudo na santa, mesmo quando o álcool e o sono castigavam sem dó a moleira. “A organização foi uma beleza, sem problema nenhum”, contou Joãozinho.

Mas de uma vez por todas, quem ganhou? Você deve estar se perguntando. Então toma. “Foi o Márcio”, saciou o organizador do evento. Obviamente, aqui cabe um parêntese. Um insight que finalmente bateu ao saber do resultado. Quando o nome de Márcio chegou aos meus ouvidos tudo finalmente fez sentido. Eu sei, nunca fui um artista no manejo dos tacos, mas algo me dizia que a minha precoce eliminação no sábado haveria de ser escrita nas estrelas. Oras, perdi para o campeão! O que numa conta simples crava meu nome na posição de segundo colocado na prática. É, amigo. Os Deuses da Sinuca gostam de uma peraltice. Reservaram para a primeira rodada, quando ninguém imaginava, a verdadeira final. Vencendo a íngrime subida que encontrou em mim, Márcio pôde sossegar e descer na banguela o caminho rumo ao título.

Com o dono dos 500 reais ao telefone, provoquei. “Senti que forcei você a melhorar muito na primeira rodada. E isso te garantiu o título, né?”. Simpaticamente, Márcio respondeu. “Pois é, foi por isso que consegui ganhar”. E a grana conquistada não vai reforçar o orçamento da fera, mas sim alimentar mais partidas valendo dinheiro. “Eu me considero jogador profissional. Só jogo apostando. E como estou sempre na ativa ganho mais do que perco”, revelou. Além de Márcio, chegaram nas semifinais Miguel, Adílson e Luizinho, com o último sendo derrotado na grande decisão. “Ele cometeu um vacilo, eu matei minhas bolas adubadas, descolei a oito e pronto”, explicou Márcio sobre o segredo da vitória.

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